quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

De um dia normal ao fim (parte II)

(Comecem a ler pelo post anterior)

Ao passar pela farmácia do bairro onde vive, lembra-se que tem para levantar o relatório de umas análises de rotina. Pára no meio daquela chuva para pensar se será boa ideia fazê-lo nesse momento. Está atrasado para o trabalho, mas como sabe que irá fazer horas extra, sem no entanto ser compensado por isso, e que quando sair do trabalho a farmácia estará fechada, decide fazê-lo nesse instante. Entra na farmácia e fica enjoado com o cheiro do detergente desinfectante que usaram para lavar o chão. Retira a senha com o número 23. Enquanto espera a sua vez ouve os barulhos emitidos pelo seu estômago, que protesta pelo facto de não ter o que digerir. Observa uma senhora de idade que recolhe um número ridículo de caixas de comprimidos que lhe foram entregues para que tome, na esperança de retardar algo que é inevitável. Consegue identificar alguns que a sua mãe também toma. Este momento é interrompido pela chamada da senha que contém o seu número.
- 23?
- Sou eu... Bom dia. Queria levantar o resultado de umas análises de rotina que fiz, por favor.
- Está em que nome?
- João, João Dias.
- Ok, vou ver se já está pronta. Dê-me só um minuto.
Enquanto a farmacêutica trata o seu pedido o João olha para a senhora que está ao seu lado no balcão. A cor amarelada da face, a palidez dos lábios e a expressão de dor fazem crer que a senhora não se encontra de boa saúde. Esta senhora olha para o João com uma expressão como que a pedir ajuda. A alma do João gela e, não sabendo o que fazer, desvia o olhar e tenta fazer não transparecer a sua preocupação. Para seu próprio alívio, a farmacêutica chega com um envelope. Assim que o João olha na cara da farmacêutica conclui que algo não está certo. A senhora que atendeu o seu pedido apresenta-se pálida e com uma expressão de compaixão. O João não sabe, nem chegará a saber, que é portador do vírus da sida.
O João, que ficou desconfortável com e situação, tira o envelope da mão da farmacêutica e agradece.
- Obrigado
A farmacêutica, imóvel, nada diz. O João vira-se e dirige-se para a porta de saída ao mesmo tempo que tenta abrir sem sucesso o envelope.
É então que entra na farmácia um homem com uma pistola. O João, distraído que ia a tentar abrir o envelope, apenas se apercebe do que se está a passar quando ouve gritos das pessoas que estão dentro da farmácia. No momento em que o João olha em frente é automaticamente empurrado por este homem. O João cai e o envelope salta-lhe das mãos. Com os seus 35 anos e toxicodependente, este homem de barba por fazer, molhado, imundo e com um cheiro que permite concluir que não toma um banho há vários dias, grita:
-Todos para o chão se não querem levar um tiro nos cornos! E nada de movimentos bruscos, estão a ouvir porcos de merda?
É nessa altura que a senhora doente desmaia e cai no chão. Ouve-se o barulho da sua cabeça a bater no desinfectado chão da farmácia. O João, como por instinto, levanta-se na ânsia de tentar socorrer a senhora que agora sangra da cabeça. É neste momento que o toxicodependente dá um tiro, sem saber muito bem para onde. O João é atingido e cai. O toxicodependente incrédulo deixa cair a pistola. Queria apenas roubar algum dinheiro para comprar a sua dose diária, mas algo correu mal. Começa a recuar e derruba um expositor de produtos de beleza. O homem olha mais uma vez para o João e sai a correr pela porta fora.
Dentro da farmácia o único calmo é o João. Neste momento o João revive momentos da sua infância. Lembra-se dos bons momentos que passou em família, dos amigos da escola, das primeiras namoradas, de todas as pessoas que de alguma forma intervieram positivamente na sua vida. Lembra-se da mãe. Uma lágrima cai instantaneamente por cada um dos seus olhos. Não quer deixar a sua desprotegida mãe sozinha e luta para se manter vivo. Não consegue e morre. O João morre triste por deixar desprotegida a pessoa que mais ama no mundo, mas feliz porque está livre de uma vida que o consumia desde o dia em que nasceu.

3 comentários:

Di disse...

FDX! O que é esta cena??? Como tu próprio dirias: "Que agressivo!!!!"
Está muito fixe, de quem é? :)

Luis disse...

Fui eu que escrevi.

Di disse...

:| Foste??? MESMO??? TUZINHU? SUPER! Não conhecia essa tua faceta de escritor! Muito bem! Espectacular mm! Sou fã! E olha....por acaso o nome foi ao acaso....? É que é o do Mangueira....e agora que dizes que foste tu que escreveste........ :/